Queen
é minha banda favorita de todos os tempos. Em 2010, cheguei a escrever um
artigo de 20 páginas dissecando cada um dos álbuns de estúdio da banda, com
exceção ao Flash Gordon, que devo ter
escutado completamente umas duas vezes nos 17 anos em que conheço a banda. Por
coincidência, meses após a conclusão do artigo, o guitarrista Brian May
anunciou que um filme contando a trajetória da banda seria feito e que Sacha
Baron Cohen, o Borat, interpretaria o saudoso vocalista Freddie Mercury. O
anúncio não poderia ter me deixado mais animado.
Contudo,
anos se passaram. Cohen havia desistido do papel por divergências com May e o
baterista Roger Taylor, consultores criativos do projeto, pois estes queriam um
filme mais leve e voltado à família enquanto o ator almejava mostrar o lado
mais sombrio da banda, sobretudo de Mercury, de longe o mais complexo e
problemático dos quatro integrantes – vale ressaltar que o baixista John Deacon
se aposentou do showbiz em 1997 e
hoje apenas ajuda a cuidar das finanças do Queen.
Outro
percalço enfrentado pela produção foi a demissão do diretor Bryan Singer
semanas antes da conclusão das filmagens devido a conflitos com o elenco e a
equipe e o fato de sequer comparecer ao trabalho em certas ocasiões. Dexter
Fletcher, seu substituto, se encarregou de completar as filmagens e montar a
película, já intitulada Bohemian Rhapsody,
mesmo nome da composição de Mercury que acabou se tornando o ápice musical e
criativo do Queen e um dos clássicos absolutos do Rock.
A
narrativa de Bohemian Rhapsody começa
em 1970, quando a banda ainda se chamava Smile e era formada por May (Gwilym
Lee), Taylor (Ben Hardy) e o baixista e vocalista Tim Staffell (Jack Roth). Farrokh
Bulsara (Rami Malek) vai a um show da banda e, momentos depois, impressionado
pela performance, tece elogios a May e Taylor, que haviam acabado de receber a
notícia de que Staffell estava deixando o Smile para excursionar com outra
banda que julgava mais promissora. Bulsara, que viria a ser oficialmente
conhecido como Freddie Mercury, imediatamente se oferece como novo vocalista da
banda, logo renomeada Queen, que contrata Deacon (Joseph Mazzello) para tocar
contrabaixo e começa a excursionar pela Inglaterra, tendo que vender a van para
gravar seu primeiro álbum em 1973, assinar com a EMI, tocar no Top Of The Pops,
fazer modesto sucesso e gravar aquele que seria seu quarto álbum, o divisor de
águas A Night At The Opera, de 1975.
Se o
parágrafo acima parece apressado, é porque o primeiro ato do filme procura
rapidamente estabelecer a formação da banda e sua escalada ao sucesso, já que
ignora sumariamente o processo de composição e gravação de Queen II e Sheer Heart Attack,
ambos de 1974, o ano mais artisticamente prolífico da carreira da banda. Além
disso, há ainda vislumbres da conturbada relação de Mercury com seu pai (Ace
Bhatti) e o namoro com Mary Austin (Lucy Boynton), esta que foi declaradamente
a pessoa mais importante da vida de Mercury e inspiração absoluta para a
magistral Love Of My Life, é abordado
de forma superficial.
Daí
em diante, Bohemian Rhapsody passa a
sofrer do mal inverso, investindo em saltos temporais ainda maiores apenas para
focar na decadência pessoal e artística do cantor, impulsionada por seu
mal-intencionado empresário Paul Prenter (Allen Leech, sobrenome este que
reflete bem seu personagem), que o arrasta a um mar de substâncias ilícitas e
orgias homossexuais. Durante este período, seu relacionamento com os outros
membros da banda também passa a deteriorar.
Prejudicando
gravemente o ritmo da narrativa, os dois atos finais são arrastados e pouco
interessantes. São neles em que os anacronismos ficam cada vez mais evidentes e
até mesmo irritantes (Rock In Rio em 1976, We
Will Rock You em 1980 e a descoberta do soropositivismo ao som de Who Wants To Live Forever em 1985,
apenas para citar alguns). O roteiro, ainda que aborde a bissexualidade de
Mercury claramente, acaba por transformá-lo em um ser quase unidimensional e
facilmente manipulado que anseia por redenção e amor na figura de Jim Hutton
(Aaron McCusker), com quem passaria os últimos anos de vida. Sabe-se que o
verdadeiro Mercury possuía forte personalidade e era ditador supremo de suas
ações.
Todavia,
Bohemian Rhapsody, apesar de seriamente
problemático, também apresenta qualidades. Os atores estão muito bem em seus
devidos papéis, sobretudo Rami Malek, que encarna com precisão o visual,
sotaque e trejeitos de Mercury e carrega o filme nas costas. Também digno de
menção é o May interpretado por Gwilym Lee, quase idêntico ao original. As
cenas que mostram o processo criativo da banda são bem interessantes, como a
gravação do épico que dá nome ao filme e a tentativa de lançá-lo como single em uma reunião com o executivo da
EMI, Ray Foster (Mike Myers, em uma ponta bastante divertida e que faz alusão à
famosa cena do carro em Quanto Mais
Idiota Melhor).
Outro
ponto positivo do filme é a longa e detalhada encenação da apresentação no Live Aid, que consome os quinze minutos
finais e apresenta o curto porém inesquecível show em sua quase totalidade. O
palco e as performances ficaram tão bem reproduzidos que a multidão artificial no
Wembley Stadium não chega a realmente incomodar.
E o
que falar sobre a trilha sonora? Obviamente impecável. Queen foi uma máquina de
qualitativos sucessos comerciais ao mesmo tempo em que mantinha uma veia
artística forte e é raro encontrar músicas que de fato possam ser consideradas
ruins em seu rico repertório. Mas não posso negar que, com exceção à Doing Alright (executada durante o show
do Smile), senti falta de canções mais obscuras no filme. Há apenas menção verbal a algumas como I’m In Love With My Car, Sweet Lady e Life Is Real (Song For Lennon). Perderam a oportunidade de
mostrar ao grande público composições que provavelmente apenas os fãs conhecem,
como Father To Son, You Take My Breath Away, It’s Late, dentre tantas outras.
Assim
sendo, após tanta meditação, chego à infeliz conclusão de que Bohemian Rhapsody está longe de ser
referência cinebiográfica. O filme possui mais erros que acertos, mas pode, sim,
agradar a todos os públicos, fãs ou não. Para mim, não vingou. Fico com o
documentário Queen: Days Of Our Lives,
este sim um relato legítimo e conciso dos britânicos.
Nota: **